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• SOCIEDADE | AFINAL, DO QUE ESTAMOS FALANDO AO FALAR DE RAÇA E DE RACISMO?



Imagem: via blog negro belchior

Matéria via: Blog Negro Belchior  |  Por GT Cotas Pós-IEL (Unicamp)


As conquistas de acesso à educação para pessoas negras têm emergido em decorrência de uma luta que elas próprias, as pessoas negras, têm protagonizado, ainda que também tenhamos testemunhado – como é de se esperar – muitas reações conservadoras e racistas contra a implementação de políticas sociais, como as cotas étnico-raciais no ensino superior. Essas conquistas são fruto de uma luta que é e deve continuar sendo permanente, principalmente em uma conjuntura de maior ataque a pautas democráticas e progressistas de uma forma geral.
Pensar os mecanismos de implantação das políticas é um elemento fundamental da luta institucional local, que é resultado e fator da luta coletiva e mais ampla contra o racismo. A política de cotas para pessoas negras é uma pauta política à qual as instituições públicas e os locais de trabalho já não podem fechar os olhos nestes tempos de lutas e de ataques maiores aos movimentos e organizações progressistas. Assim, podemos dizer que a implantação da política é também fruto da negociação entre as forças institucionais (geralmente conservadoras, embora nem sempre) e as forças reivindicatórias. Nessa correlação, o caráter reivindicatório das cotas raciais não pode ser apagado, uma vez que discutir cotas raciais é precisamente parte de uma luta mais ampla contra o racismo. Essa luta, por sua vez, acaba também envolvendo a discussão sobre nossas concepções de raça.
Um dos mecanismos fundamentais da política de cotas raciais, por exemplo, é a autodeclaração racial. É certamente profunda a discussão em torno dos fundamentos que envolvem o uso da autodeclaração em nossas instituições, no IBGE e no ingresso por cotas, para citar alguns espaços sociais. No entanto, em termos breves, podemos dizer que um dos principais fundamentos da autodeclaração é de que não podemos assumir uma postura objetivista ao atribuir a alguém determinada raça, a partir de um ponto de vista biologizante. Isso porque, por meio da acumulação de conhecimento científico, podemos saber que não existem raças, no sentido biológico do termo. Isto é, não há subdivisões taxonômicas na espécie humana, biologicamente falando. Temos um patrimônio genético tal que isso não ocorre. Por isso, como nos lembra Kabengele Munanga[2]raça existe enquanto uma categoria social. Isto é, o racismo se baseia na crença de que há subgrupos humanos diferenciados em características suficientes para que se possa dizer que uns (os negros e os indígenas, por exemplo) seriam
inferiores física, social, cultural e/ou psicologicamente que outros, os brancos, tomados assim como os melhores (talvez os únicos) exemplares da humanidade.
Embora o termo “racismo” tenha sido usado, ainda segundo Munanga, no sentido da crença da inferioridade de outros grupos exógenos em geral (na Europa, os imigrantes não-europeus [xenofobia], mas, em um passado recente, também os homossexuais e as mulheres), ele é pautado, no Brasil, segundo os movimentos negros e intelectuais, na inferioridade do negro, como continuidade histórico-ideológica do processo de escravização de africanos durante a colonização. Nesse sentido, as características físicas seriam uma característica fundamental para o racismo.
Nesse sentido, há ações institucionais, no Brasil, que falam em “critérios subsidiários de heteroidentificação” (como o fez a Ação Declaratória de Constitucionalidade 41, de 08/06/2017, do Supremo Tribunal Federal e a Recomendação n° 41, de 9 de agosto de 2016, do Conselho Nacional do Ministério Público). As maneiras com que pode se dar essa heteroidentificação certamente não são únicas, mas dificilmente se poderá ignorar (e podemos dizer isso sem tabu!) as características físicas como marca ou diferença importante para o pensamento e atitude racistas e para a definição do que é ser negro no Brasil, como defendeu recentemente o coletivo Balanta, na UFRGS, a favor do critério fenotípico[1]. Esse entendimento delineado sobre a natureza do racismo não implica necessariamente uma afiliação a um biologismo atroz, ao racialismo do século XIX ou à crença de que os seres humanos se dividem em raças hierarquizadas. Trata-se, sobretudo, do reconhecimento de que o racismo, pelo menos no Brasil, funciona de forma pigmentocrática (podemos conferir, em relação a essa questão: NASCIMENTO, 2015[2]; CRAIG, 2002[3]; JAMES & HARRIS, 1993[4]; WOODSON, 1934[5]; CALIVER, 1933[6]; REUTER, 1918[7]) ou colorista (WILDER, 2008[8]), tese que nos remete parcialmente, no Brasil, a Nogueira[9] (1954) em relação ao “preconceito de marca”. A polícia e outras forças do Estado têm, empiricamente, atualizado essa tese de forma cotidiana, bem como as pessoas que mudam de calçada ao avistar pessoas negras com base no “tom” da cor da nossa pele. Esse importante entendimento de elementos da raça e do racismo reconhece um aspecto bem material, as características físicas, que não podemos apagar ou idealizar por meio do tabu em relação à descrição de alguém com base em suas feições, ainda que nem sempre relevantes (estamos falando daquela “dificuldade” em dizer, por exemplo, “pele preta…” e “pessoa branca…”).
Como foram e ainda são chamados os negros, muitas vezes? “Pessoas de cor”. De onde vem o termo “negro” senão do universo referencial das cores? Não vem de uma ideologia de classificação qualquer das “raças”: foi fortemente construído com a alusão às diferenças de cor, perspectivada sócio-historicamente a partir dos racismos do nosso mundo, que nos “dividiu” em “negros”, “brancos”, “amarelos”, ainda que o objetivo certamente não tenha sido apenas o de classificação stricto sensu. Assim, de fato, não existem raças no sentido biológico do termo, mas a autodeclaração, assim como defendeu também o movimento negro da UFRGS, no começo de 2018, não deve ser baseada meramente no subjetivismo de quem se declara ou nas características de outro parente. Deve haver um processo não meramente identitário em si mesmo, mas objetivado (mas não objetivista) de si, de sua história, da história do Brasil (que se fundamenta fortemente no mito da democracia mestiça e “mulata”) e do mundo. O relativo aumento da consciência negra no Brasil, indicado pelo aumento da autodeclaração como preto ou pardo nos últimos censos do IBGE aponta para o também relativo e progressivo êxito da defesa da autodeclaração. No entanto, estamos em um momento, diante da possibilidade de fraudes na implementação das cotas étnico-raciais e da presença de pouca politização sobre o racismo brasileiro, de discutir também a heterodeclaração, uma vez que temos lutado para que os negros se identifiquem como tais, sejam eles pretos, “pardos”, “moreninhos”, etc., mas certamente não que pessoas brancas possam se autoidentificar como negros apenas por meio da ascendência ou da subjetividade em si mesma.
Nesse sentido, baseamo-nos também na compreensão aprofundada de que o racismo não é um bloco monolítico que esmaga os negros da mesma forma de todos os lados, e que não é assim apenas pela existência de muitos fatores, como a diferença de classe, fração de classe, gênero ou ocupação, mas também por causa da maneira com que a cor da pele é vista (essa “variável”, essa marca, um “estigma” que se deve considerar ao se falar de racismo): de uma forma geral, e considerando o racismo, quanto menos preta a pessoa, melhores tendem a ser as possibilidades sociais, ainda que também essas possam ser limitadas e expandidas de outras formas. Esse processo de branqueamento (melhores condições para as “melhores” cores), já apontado parcialmente também por Ianni (2004)[1], por exemplo, é (em forte conexão com o mito da mestiçagem e da democracia racial freyreano) uma característica do racismo brasileiro.
Embora essa compreensão do racismo pautada no branqueamento e no mito da democracia racial esteja de alguma forma presente no arcabouço político nacional (considerando a referida Ação de Constitucionalidade, por exemplo) e no arcabouço teórico brasileiro e internacional sobre o racismo no Brasil (ver, por exemplo, a discussão feita por Costa (2006) sobre as teorias mais fortes da diferença racial[2]), ela ainda não é incorporada “para valer” na citada relação entre as forças institucionais (e intelectuais, no caso do espaço institucional acadêmico) e os movimentos políticos mais propriamente progressistas, em parte por causa da complexidade da realidade brasileira e, particularmente, da intelectualidade em geral, ainda predominantemente branca e de politização heterogênea e, às vezes, baixa. Pelo menos é o que vimos experimentando no nosso dia a dia de luta por uma política sólida de cotas étnico-raciais na pós-graduação.
Sigamos em frente!
[1] IANNI, Octavio. Raças e classes sociais no Brasil. 3. ed. rev. e amp. São Paulo: Brasiliense, 2004.
[2] COSTA, Sérgio. Dois Atlânticos: teoria social, anti-racismo, cosmopolitismo. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2006.
[2] NASCIMENTO, Giovana Xavier da Conceição. Os perigos dos Negros Brancos: cultura mulata, classe e beleza eugênica no pós-emancipação (EUA, 1900-1920). Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 35, nº 69, p.155-176, 2015.
[3] CRAIG, Maxine Leeds. (2002) Ain’t I a Beauty Queen: Black Women, Beauty and the Politics of Race. New York: Oxford University Press.
[4] JAMES, Winston; HARRIS, Clive. (1993) Inside Babylon: The Caribbean Diaspora in Britain. London; New York: Verso.
[5] WOODSON, Carter Goodwin. (1934) The Negro Professional Man and the Community. Washington, D.C.: Association for the Study of Negro Life and History, Inc.
[6] CALIVER, Ambrose. (1933) A Background Study of Negro College Students. Washington, D.C.: Government Printing Office.
[7] REUTER, Edward Byron. (1918) The Mulatto in the United States. Boston: R. G. Badger.
[8] WILDER, Jeffriane. (2008) Everyday colorism in the lives of young black women: revisiting the continuing significance of an old phenomenon in a new generation. Dissertation, Graduate school, Doctor of Philosophy, University of Florida.
[9] NOGUEIRA, Oracy. Preconceito racial de marca e preconceito racial de origem: sugestão de um quadro de referência para a interpretação do material sobre relações raciais no Brasil. Tempo Social, v. 19, n. 1, 2007 [1954].
[1] Este pequeno texto não pretende esgotar a discussão sobre os temas nele desenvolvidos. Temos em mente dialogar com aqueles que lutam contra o racismo e divulgar uma pequena discussão que iniciamos no GT Cotas Pós-IEL junto com nossas intervenções institucionais a favor da implementação e do sucesso da política de cotas étnico-raciais na Pós-graduação do IEL-UNICAMP. O GT é composto por estudantes de graduação e pós-graduação em Linguística, Estudos Literários/Teoria Literária e Linguística Aplicada do IEL-UNICAMP. Atualmente, alguns dos seus membros fazem ou já fizeram parte do Núcleo de Consciência Negra e da Frente Pró-cotas da UNICAMP. Estamos abertos a feedbacks antirracistas sobre este artigo. E-mail do grupo: gtcotasposiel@gmail.com.
[2] A citação de autores, neste texto, não representa necessariamente uma determinada afiliação teórica, mas o reconhecimento dessas contribuições. Estamos citando aqui, por exemplo: MUNANGA, Kabenguele. Uma abordagem das noções de raça, racismo e etnia. Palestra proferida no 3º Seminário Nacional Relações Raciais e Educação-PENESB-RJ, 05/11/03. Disponível em: https://www.ufmg.br/inclusaosocial/?p=59


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